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ADPERGS Entrevista: Tese de doutorado da Defensora Pública Mariana Py Muniz Cappellari aborda magistratura e violência policial

A ADPERGS entrevistou a Doutora em Ciências Sociais pela PUC-RS, defensora pública Mariana Py Muniz Cappellari, sobre a tese, defendida na última sexta-feira (26/03), com o tema “Polícia! Para quem precisa de justiça. Como a magistratura representa a violência policial”

A defensora, além de Doutora em Ciências Sociais pela PUC-RS, também é mestra em Ciências Criminais e especialista em Ciências Penais pela PUC-RS, especialista em Direito Privado pela Unisinos e professora da especialização em Direito Penal e Processo Penal da Feevale. 

A tese “Polícia! Para quem precisa de justiça. Como a magistratura representa a violência policial”, tem como objetivo analisar como os Juízes representam a violência policial e quais implicações se extraem das suas decisões e deliberações, observando o fenômeno social que é a violência policial no sistema de justiça.

Confira a entrevista na íntegra: 

1. O tema da tese escolhida pela senhora foi “Polícia! Para quem precisa de justiça. Como a magistratura representa a violência policial”, por que escolhestes este assunto para ser tratado?

A tese e o tema propriamente tratado nela nasce da minha experiência profissional. Foi no interior do CRDH da Defensoria Pública, quando, então, estava na coordenação do mesmo que essa inquietação foi se formando. O CRDH foi pensado para prestar atendimento multidisciplinar às mulheres vítimas de violência e às vítimas de violência estatal. Quando assumi o Centro me impressionou que dentro do guarda-chuva da violência estatal, mais da metade dos expedientes diziam com violência policial. Também, a perspectiva multidisciplinar me fez acessar a dor das vítimas dessa violência de forma muito mais próxima e diversa daquela enfrentada nos processos judiciais. Assim, busquei a Universidade e fizemos uma parceria com o Professor Rodrigo G. de Azevedo e seu grupo de pesquisa junto a PUCRS, chamado GPESC. O GPESC então confeccionou um diagnóstico de violência policial olhando para os nossos expedientes, assim, estabeleceu quem eram essas vítimas, seus autores, as circunstâncias dos fatos, bem como os encaminhamentos que prestamos, pois, na esfera da violência policial o acompanhamento das vítimas, além do atendimento psíquico e social, no âmbito jurídico, se dava nas três esferas possíveis de responsabilização dos policiais, quais sejam, a administrativa, no que diz com as suas corregedorias, criminal, encaminhamento dessa notícia ao Ministério Público e cível, através do ajuizamento de ações indenizatórias contra o Estado. O diagnóstico me fez questionar qual seria o papel do Poder Judiciário nessa temática, considerando que demonstrou a ausência de responsabilização no âmbito das corregedorias e a omissão do Ministério Público no exercício de uma atribuição constitucional que é o controle externo da atividade policial, o que outras pesquisas e pesquisadores também já teriam apontado. Considerando que muitas das decisões nas esferas de responsabilização a qual acompanhamos passariam pelo Poder Judiciário, bem como, considerando a postura possível do Juiz no arquivamento do inquérito policial, anteriormente a edição da Lei Anticrime, passei a querer compreender como os Juízes enxergavam a violência policial e quais implicações, portanto, que essa visão de realidade proporcionava, não apenas diante a própria violência policial, mas, também, diante do sistema de justiça.


2. Qual a importância deste tema dentro do âmbito da Defensoria Pública?

Esse tema é de fundamental importância para a Defensoria Pública, para todas as instituições do sistema de justiça e de segurança pública, e para a sociedade como um todo. No âmbito da Defensoria Pública ressalto que o artigo 134 da Constituição Federal ao conceituar a nossa instituição lhe alça a ser a única instituição em todo o texto constitucional e no âmbito do sistema de justiça, promotora dos direitos humanos. Além disso, ao afirmar que a Defensoria Pública é expressão e instrumento do regime democrático, está a dizer que a Defensoria Pública opera na e para a democracia. Se pensamos, portanto, na ordem democrática e que esta não se separa dos direitos humanos fundamentais, o enfrentamento da violência estatal é atribuição da Defensoria, o que, inclusive, encontra previsão na nossa Lei Complementar nº 80/1994, enquanto função institucional. Assim, compreender como a Magistratura enxerga a violência policial e quais as implicações que esse olhar produz toca muitas das atribuições próprias da instituição, seja na ponta, eu digo, nos colegas que atuam enquanto órgãos de execução, na defesa nos processos criminais e cíveis, seja no âmbito do órgão de atuação, como o trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e no âmbito do próprio CRDH.   


3. A senhora acredita que a qualificação na carreira na Defensoria Pública é importante?

Sim, acredito que a qualificação é fundamental. Penso que enquanto defensores públicos temos acesso a uma realidade que poucas instituições possuem, talvez, somente a polícia acesse de forma mais próxima a população mais vulnerável, como a Defensoria Pública o faz. E a formação jurídica, por si só, além de não abarcar o conhecimento suficiente para lidar com essa realidade de opressão, violência e desrespeito, exige a proximidade da interdisciplinaridade, como a nossa lei complementar também impõe, e que de certa forma cumpre o CRDH, além da constante atualização necessária para o enfrentamento disto e para uma atuação institucional tanto mais efetiva e qualificada de serviço público que prestamos.


4. Como a tese da senhora poderá contribuir para a atuação das defensoras e dos defensores públicos?

Eu busquei sair do direito para poder compreender de forma mais global o fenômeno da violência policial e sua relação com o Poder Judiciário, por isso, escolhi o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS. Penso que o meu trabalho, portanto, metodologicamente realiza de forma qualitativa uma observação do funcionamento das audiências de custódia em Porto Alegre, analisa um banco de 72 decisões judiciais do Tribunal de Justiça do Estado do RS e entrevista, na forma semiestruturada, 25 magistrados, entre juízes e desembargadores. A riqueza do material colhido no campo empírico, conjuntamente com a análise teórica dos dados coletados, são elementos que podem trazer respostas às ações que empreendemos na ponta enquanto defensores públicos. Muitas vezes, ao atuar no sistema de justiça, nos valemos dos conhecimentos técnicos, mas não conseguimos acessar aquilo que permanece não visível, até pelo peso da burocracia e das suas rotinas, muitas vezes mecânicas. Eu procurei olhar de fora pra dentro do sistema de justiça e o trabalho descreve isso, pontua aquilo que não é visível. Dessa forma, penso que essa leitura pode contribuir em muito para a atuação dos colegas na ponta, exatamente no que diz com o funcionamento das práticas e dos discursos adotados pela justiça nesse ponto.


5. O trabalho produzido teve o intuito de questionar os métodos e decisões do judiciário em relação a violência policial. A senhora acredita que a tese pode alertar o poder judiciário com os dados coletados? 

Sim, penso que a ideia do trabalho, enquanto problema de pesquisa, foi não apenas compreender como os juízes representam a violência policial, mas, também, quais implicações que se extraem dessa compreensão, seja para a própria violência policial, seja para o sistema de justiça. A teoria da representação social, um dos referenciais teóricos que utilizo, fala de uma via de mão dupla, qual seja, ao mesmo tempo em que representamos a realidade, nós construímos essa mesma realidade. No caso da Magistratura, mais ainda, porque as decisões judiciais têm o condão de impactar o social, produzindo realidades. Da mesma forma, as práticas adotadas e os discursos sinalizados no interior do sistema de justiça, produzem realidades e são compostos por estruturas sociais que anteriormente internalizamos, no caso da tese, utilizo para tanto os referenciais teóricos do sociólogo Pierre Bourdieu, que aponta para a internalização dessas estruturas sociais na mediação operada pelo habitus que constitui o campo jurídico. Assim, ao descrever como os juízes compreendem a violência policial e as implicações dessa compreensão, trazendo à visibilidade o invisível, a ideia do trabalho foi exatamente a de proporcionar uma leitura ao Poder Judiciário e também aos demais integrantes desse sistema de justiça, do seu funcionamento nessa temática, auxiliando, assim, na reversão dos motivos que embasam as suas ações.


6. O objetivo geral da tese foi verificar como os juízes compreendem a violência policial, qual foi a conclusão da senhora sobre esse questionamento? 

Eu penso que meu trabalho abre mais agendas de pesquisa do que propriamente traz uma conclusão, aliás, nas ciências sociais, diferentemente do direito, a conclusão se dá de forma diversa, de forma mais fluída, até porque ao analisarmos fenômenos sociais, há que se compreender a fluidez da própria sociedade, sua diversidade e as constantes mudanças pelas quais perpassa, quanto mais na contemporaneidade. Entretanto, penso que posso afirmar que enquanto hipótese de pesquisa construída eu pude confirmá-la através do material empírico coletado e analisado. A minha hipótese de pesquisa assim se construiu: dada a complementaridade entre práticas policiais e sistema de justiça, conforme nos ensina o Prof. Kant de Lima, e a internalização e mediação destas operada por meio do habitus que constitui o campo jurídico, agora nos dizeres e ensinamentos de Pierre Bourdieu, a Magistratura do Estado do RS ao representar e construir a realidade do fenômeno social violência policial, legítima-o e naturaliza-o. Porque afirmo que a hipótese foi confirmada, porque os dados empíricos demonstraram a não nominação da expressão violência policial, sendo esta representada no excesso, abuso, no excesso ao estrito cumprimento do dever legal, ou seja, no extrapolar da legalidade. Ao não nomear a expressão violência policial, encontramos implicações no mundo social e no próprio fenômeno, de legitimação, na medida em que não alçou a condição de violento o policial, e não reconheço a violência policial enquanto violência estrutural, blindando assim e ampliando o arbítrio e a arbitrariedade policial. Além disso, a legitimação dessa violência também é observada no valor creditado às palavras dos policiais em detrimento ao local ofertado à vítima, qual seja, de inveracidade, num nítido processo de sujeição criminal, conforme nos ensina o Prof. Michel Misse. Entretanto, o que a legitimação e naturalização do fenômeno da violência policial encobre é o exercício do poder simbólico e da violência simbólica por parte do Juiz, conforme nos ensina Pierre Bourdieu, além da legitimação do lugar que ocupam nesse espaço, o que se revela na hierarquização da cidadania e na desigual aplicação da lei.

7. Durante sua tese, a senhora descreve violência policial como um fenômeno, por quê? 

Como trabalho no marco das ciências sociais, olho para a violência policial enquanto fenômeno social, e por isso assim a descrevo. Há, inclusive, um item no meu trabalho onde contextualizo o fenômeno da violência policial no Brasil, exatamente diante os dados apontados por organizações da sociedade civil e por organizações internacionais de proteção dos direitos humanos, os quais apontam para a permanência dessa estrutura na sociedade brasileira e também para os altíssimos índices de letalidade nesse sentido, tanto quanto já temos uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos exatamente no âmbito da violência policial, que é o Caso Favela Nova Brasília. Eu gosto muito de uma frase do pesquisador e historiador Holloway, o qual estuda o nascimento da polícia no Brasil no século XIX, a qual utilizo no meu trabalho, e ele nos diz o seguinte: “A violência policial no Brasil não é um remanescente, ela se encontra incorporada às estruturas regulamentares de repressão.” Sendo assim, se traduz em fenômeno social e portanto nos traz implicações consequentemente no âmbito do campo jurídico também. Por ser fenômeno social há que se compreende-lo no marco da estruturação da sociedade brasileira, exatamente por isso no item em que contextualizo o fenômeno da violência policial no Brasil início com a seguinte frase do Professor Paulo Sérgio Pinheiro: “O Estado brasileiro jamais renunciou a nenhuma das “conquistas” – desde o cassetete de borracha, passando pelo “pau de arara”, até a bateria pára choques elétricos – no que diz respeito à ilegalidade dos regimes autoritários.” Penso que a frase do Professor Paulo Sérgio Pinheiro nos resume com precisão o fenômeno violência policial no Brasil.

8. Por fim, a senhora gostaria de fazer alguma consideração final? 

A título de consideração final, eu gostaria de agradecer a Defensoria Pública do Estado do RS por ter podido estar a frente do CRDH e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, órgãos de atuação em que a tese inicialmente foi gestada, também, gostaria de agradecer aos meus colegas, porque enquanto órgãos de execução nosso papel deve ser o da constante luta contra as arbitrariedades, e sabermos, nesse contexto, ainda mais o que estamos vivendo hoje, que não estamos sós, mas juntos, é o que revela a força suficiente para o cumprimento da nossa missão constitucional, e nesse sentido, portanto, contamos com a Associação das Defensoras e dos Defensores Públicos do Estado do RS – ADPERGS.

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